André Cepeda - Rien no Câmara Escura

Nada

O aspecto mais marcante das imagens que compõem a série Rien de André Cepeda é a sua frontal, taxativa e crua literalidade. Uma pedra suspensa no negro, uma parede com marcas do tempo e do mau trato, um fio eléctrico que atravessa um tecto, uma mulher nua que se expõem são isso mesmo. A expressão central aqui é 'isso mesmo'. O que está nas imagens pode ser descrito, com bisturi, pode ser analisada como se num vidro de laboratório, pode ser sentido como uma estalada, mas sempre sob a égide de uma sensação imperiosos de que o que aqui está é isso mesmo, uma mulher ou uma parede, uma pedra ou um fio eléctrico. O caminho para aqui chegar tinha passado por diversas etapas, desde uma atenção cirúrgica aos restos urbanos, um olhar frontal sobre o que não merece senão uma visão de relance. Despois uma convivência sem distância com vidas que, também elas, só poderiam ser vistas de relance. A série Rien, no entanto, na conversão ao preto e branco, ganhou uma realidade que só a fotografia pode conferir, sobretudo porque não se enredou em qualquer retórica poética sobre a potência do próprio preto e branco, nem se perdeu na criação de um discurso mais ou menos alegórico. A sua liberalidade é o seu argumento, abrindo uma multiplicidade de possibilidades, frequentemente receptivas para a análise - não há discurso que seriamente possa converter a imagem em metáfora de nada, nem de tristeza, nem de abandono, nem de cicatriz nem de nada.

No conjunto das imagens que compõem a série existem três tipologias que se podem claramente distinguir: as imagens de corpos - de corpos femininos e de objectos que se comportam como corpos, com as mesmas marcas, as mesmas cicatrizes as mesmas rugas -, de imagens de paredes que são como telas - com as suas incisões e rastos - e imagens de lugares, menos presentes na selecção que aqui se apresente e que corresponde à exposição que teve lugar na Galeria Pedro Oliveira, no Porto. Pertencendo a tês tipologias, que possuem em comum a ostentação de marcas como que cartografias do tempo, cicatrizes do uso. Na pele, na nosso como na das coisas e dos lugares, das paredes e dos móveis, as rugas, as fracturas e as marcas contam histórias, são biográficas. As cicatrizes têm sempre a memória contida da ferida, do que esteve aberto e suturou, se suturou ou foi cozido, remendado, agravado, tapado. Isso é o que não se mostra porque a memória da quebra fá-la permanecer aberta. Nas suas diversas tipologias, estas imagens tornam presente o desconhecido que feriu, que fendeu, que quebrou. Não através da alusão ou da metáfora, mas mostrando e sobre essa exposição dizendo nada.

Há alguns conjuntos nestas imagens que remetem para outras instâncias da imagem segundo matrizes que possuem uma longa história na história da arte, sobretudo a natureza morta e nesta, a Vanitas, que tinha como função alertar-nos para a nossa mortalidade, para o efémero da vida, para a inviabilidade do fim. Algumas destas imagens poderiam pertencer a essa linhagem. Outras, pelo contrário, parecem pertencer a uma tradição barroca do corpo que se volteia, quase num esgar rubensiano. Outras vezes ainda o seu realismo é herdeiro de Courbet, mastigado por Robert Frank, mas sem a narrativa. Há, no conjunto das imagens, um tríptico que possui uma ressonância pictórica particular, os três corpos que se expõem sobre uma colcha, uma expõem sobre uma colcha, uma espécie de quilt, um patchwork que, sem qualquer, ironia, ecoa Klimt, que traz uma evocação da japonerie de fim-de-século aqui convertida na coisa caseira que de, facto, é. Na fotografia da mulher, que, desenhando um arco com o corpo nos atira à cara a ostentação do seu sexo, está evidentemente contida uma evocação de Egon Schielle, ou de Kokoshka. A perversão do olhar que quer ver Courber, ou Raushenberg ou Man Ray - e que, ligitimamente o faz - e nesse processo esbarra com a liberalidade mais seca fica, essa sim, exposta. Mas intimamente, estremecendo quase nada.

Por vezes, quando olhamos para estas fotografias, somos confrontados com alguma memória do cinema de Pedro Costa ou de Jean-Marie Straub. Porque as imagens são de um rigor formal equivalente e porque se atravessam perante nós, sem piedade. Mas ao contrário do cinema, no qual o dispositivo cinematográfico está sempre presente - e voluntariamente presente, nos casos citados - , nestas fotografias o dispositivo fotográfico desapareceu, tornou-se translúcido. Não pensamos que entre nós e o que está perante nós há um processo e um fotógrafo porque a exposição daqueles corpos e daquelas paredes e daqueles lugares e daquele sexo foram feitas para alí estarem,  apontado-nos como os seus destinatários, sem mediação, directamente tácteis, tão disponíveis com uma coisa qualquer que sempre alí esteve, exposta, por vezes tão discreta como uma pequena greta numa parede, uma gotícula, uma prega na pele de um fruto que secou, a doçura de uma pedra. Como se entre nós e este mundo respirasse um hálito que pode ser sentido. Com se entre nós e as imagens não existisse nada.

Delfim Sardo
Março 2014.







Rien está exposto no Centro de Cultura Contemporânea de Torres Vedras no edifício Câmara Escura.
É possível visitar a exposição até ao dia 10 de Maio de 2014.

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